O Brasil é um país afeto a crises, das mais variadas naturezas. Muitas delas, contudo, deixam-se reconduzir a um aspecto comum: a fragilidade institucional. Trata-se de um problema ligado à própria engenharia constitucional do país.
Normalmente, as soluções são pensadas do ponto de vista micro, setorial. Focam-se nos detalhes, encobrindo-se as grandes causas. Isso ajuda a explicar os motivos pelos quais o que tem sido feito, a partir da promulgação da Constituição de 1988, em que pese avanços pontuais, ainda permanece longe de solucionar as velhas crises, bem como de evitar que novas acabem surgindo.
Tome-se por exemplo a crise política. A redemocratização do país, conquistada a duras penas, não logrou pleno êxito em construir o caminho para uma duradoura estabilidade política. Os processos de impeachment, as dificuldades de relacionamento entre os Poderes, escalonamento da corrupção, bem como o acirramento quase que incontrolável da polarização, dão conta dessa realidade.
Dentre tantas crises, a da política merece um papel de destaque e isso não se dá por acaso. Ocorre que a solução para os grandes problemas brasileiros passa, gostemos ou não, por decisões tomadas na arena política. Desde os planos de governo que dependem de políticas orçamentárias, passando pela aprovação de projetos de lei em temas diversos, até se chegar nas complexas reformas constitucionais. Em comum, todos carecem de aprovação no Congresso Nacional, vale dizer, dependem de decisões que, ao fim e ao cabo, são de natureza política.
Essa constatação é suficiente para que se perceba que quando a má política triunfa, todas essas estratégias de ação tendem a se afastar da eficiência e, portanto, da própria noção de bem comum, aqui entendido como as aspirações que todos temos em comum.
Aliás, isso ajuda a explicar por que as vozes que dizem que detestam a política - posição cada vez mais frequente na sociedade - o façam por meio de uma expressão que pode levar a mal-entendidos. O que essas pessoas, em verdade, querem transmitir, é que detestam a "má política", pois a boa política é indispensável para o bem viver em sociedade.
Basta lembrar que as decisões relevantes em matéria de saúde, segurança pública, educação, assistência social, emprego, economia e renda, dentre tantas outras, passam, necessariamente, pelo debate político, a chamada esfera pública de decisão. Portanto, a boa política não é algo a ser odiado, mas sim almejado com todas as forças.
Esse é o motivo pelo qual a reforma das reformas deveria começar pela chamada reforma política, aqui entendida com um conjunto complexo de modificações que visam a aprimorar e qualificar os nossos sistemas de governo, eleitoral e partidário, bem como a própria forma de condução da nossa representação nos órgãos de deliberação coletiva, de caráter eletivo.
Há muito o Congresso Nacional vem sugerindo a pauta da reforma política, todavia, sem nunca ter chegado perto das grandes metas. É bem verdade que alguns avanços foram registrados.
Cito a proibição de coligações nas eleições proporcionais, a cláusula de desempenho (barreira) para frear os acessos a recursos do fundo partidário e à gratuidade da propaganda no rádio e TV por parte de partidos políticos com votação inexpressiva no território nacional, bem como a obrigatoriedade para que os candidatos ao Legislativo, nas eleições proporcionais, obtenham, no mínimo, 10% ou mais do quociente eleitoral para serem eleitos, diminuindo, ao menos um pouco, o danoso efeito do chamado "puxador de votos".
Sem embargo de outras medidas aprovadas nos últimos anos, que poderiam ser enquadradas na classificação de aprimoramentos, a verdade é que todas não resolvem os grandes problemas relacionados à má qualidade da representação política nacional - vista de forma geral - assim como a questão da disfuncionalidade dos órgãos de representação política.
Neste cenário de incertezas, há ao menos uma convicção. A solução para a crise política passa por uma visão de conjunto, que reclama uma reforma institucional que priorize o todo e não soluções pontuais, que tendem a ser consumidas por problemas remanescentes de maior envergadura.
Uma realidade atual comprova a tese: a crescente insatisfação da população com a classe política, a considerável parcela de indiferença de boa parte dessas lideranças eleitas para a melhora das condições vida no país, aliada a um mundo quase que paralelo, marcado por privilégios e regalias que destoam, completamente, da realidade nacional, consumindo escassos recursos públicos que poderiam ser direcionados às necessidades básicas da população, informam que o sistema político está ainda muito longe do ideal.
A maior dificuldade em torno da aprovação de uma verdadeira reforma política reside em uma constatação elementar: ela depende daqueles que, justamente, se beneficiam das atuais regras. Em outras palavras, grande parte dos que lá estão não têm o menor interesse em aprovar mudanças que possam dificultar seus projetos de reeleição, por criarem regras aptas a selecionar perfis mais vocacionados ao bem comum.
São vários os pontos que demonstram essa realidade, a começar pela sistemática de emprego de emendas parlamentares, que ao pessoalizarem recursos orçamentários com finalidade eleitoreira, afastam, por regra o uso racional de verbas públicas, dificultando não apenas a condução de planejamentos integrados, como a própria fiscalização quanto à prioridade, oportunidade e conveniência dos investimentos.
Mas não é só isso. Os detentores de mandato eletivo contam com generosas verbas públicas para divulgação dos seus mandatos, acesso mais facilitado aos recursos dos fundos eleitoral e partidário, um expressivo corpo de assessores dedicados a manter a visibilidade dos eleitos, além de inúmeras verbas que garantem deslocamentos contínuos junto à bases eleitorais. É fácil perceber que se trata de um sistema onde a competição é, no mínimo, desigual, o que dificulta a própria renovação da representação política.
A necessidade de manutenção de um sistema viciado, ligado à possiblidade de sucessivas reeleições para os órgãos de deliberação coletiva, ajuda a explicar por que todas as grandes reformas políticas não saem do papel.
Ao eleitorado, evidentemente, cabe uma mudança de postura, no sentido de cobrar mais intensivamente seus representantes. Entretanto, para que isso seja feito a contento, além de abandonar a indiferença, cabe à população reconhecer quais deveriam ser as prioridades, objeto de consensos mínimos, que não mais podem ser ignoradas por parte daqueles que chegam ao poder pelo voto.
Este é um dos tantos debates que pertencem à dinâmica constitucional - título desta coluna - que tenho a honra de ocupar. Nas próximas edições, falaremos dos principais aspectos que deveriam ser abordados em uma reforma política de verdade, cientes de que somente o conhecimento em torno dos grandes problemas brasileiros é capaz de atrair soluções, já que sem a compreensão da moléstia, um diagnóstico confiável não se mostra possível.