Governo de gabinete no Brasil: uma saída exótica e contrária ao dogma da separação dos poderes?
Por Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte
13/07/2016

 https://jus.com.br/artigos/50223/governo-de-gabinete-no-brasil/1

 1. Problematização. 2. Princípio da Separação dos Poderes. 2.1 A limitação do Poder pelo Poder. 2.2 Histórico do dogma da separação dos poderes. 2.3 A separação dos poderes na prática. 2.4 O Presidencialismo que se tem praticado no Brasil é um sistema no qual há equilíbrio entre os poderes? 2.5 O atual descrédito do Congresso Nacional e o desequilíbrio dos Poderes. 3. Parlamentarismo no Segundo Reinado. 3.1 Gabinete Lafaiete: Um estudo de caso. 3.2 O peso da Opinião Pública.  4. Conclusão e resposta aos diversionistas. 5. Bibliografia.

1. PROBLEMATIZAÇÃO.

Algumas questões são recorrentes quando se discute a adoção do Parlamentarismo no Brasil. O presente artigo tem por objetivo enfrentar duas dessas objeções; uma dogmática e outra histórica.

A primeira, dogmático-jurídica, é a seguinte: A fusão do Legislativo com o Executivo, representada e corporificada no Gabinete, não implicaria o risco de um país parlamentarista se degenerar em uma tirania? Afinal de contas, não está escrito no preâmbulo da constituição francesa de 1791 que " Toda Sociedade na qual não é assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição"? Não afirmaram, e afirmam ainda, publicistas de renome que "sem a separação dos poderes não há senão o devotismo"? Enfim, seria - de algum modo - a relativização do princípio da separação dos poderes perniciosa ou daninha? Um flanco aberto na democracia que, em que pese inócuo em regimes consolidados como o britânico, poderia produzir resultado catastróficos na nossa jovem e malparada república?

A segunda crítica é a de que esse sistema não se compatibilizaria com o temperamento nacional. Logo, sua adoção nessas terras seria algo um tanto artificial ou exótico[i]. A partir de tais questionamentos, alguns defensores do sistema presidencial chegam a afirmar que nunca se praticou o governo de Gabinete no Brasil (nem mesmo durante o segundo reinado). Esse é o suposto dado histórico que pretendemos problematizar na segunda parte desse trabalho[ii].

2. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.

Primeiro, devemos reconhecer que, de fato, a fusão dos poderes Executivo e Legislativo é uma importante marca do sistema de Gabinete[iii].

Mas dito isso, temos que relembrar a seguinte ponderação do juiz Oliver Wendell Homes Jr.: "Proposições gerais não decidem casos concretos"[iv]. Portanto, se se trata de avaliar os prós e contras de um dado arranjo dos poderes constituídos, dogmas abstratos ? como o da separação dos poderes ? dificilmente possuirão a força de uma razão conclusiva[v].

Mas isso não basta para sepultarmos o assunto. É que ainda se pode perguntar o seguinte: Mesmo que não se trate de um preceito com força de razão conclusiva, não teria o princípio da separação dos poderes algo de verdadeiro e útil a ser ao menos levado em conta pelo analista? E, se esse for o caso, não decorreria daí que se observarmos a questão sob o prisma desse princípio devemos concluir que o Presidencialismo seria um sistema mais perfeito do que o governo de Gabinete?

2.1 A limitação do Poder pelo Poder.

Pois bem, cremos que existe sim algo de verdadeiro nesse princípio: A ideia de que a separação dos poderes é menos nociva à liberdade individual do que a sua concentração. No entanto, isso é verdadeiro pelo seguinte motivo: Com a divisão do poder, cria-se um ambiente no qual o próprio poder limitará e fiscalizará o poder. Mas, ainda assim, não vemos como extrair daí uma censura ao sistema parlamentar, pois em que pese o Gabinete seja o laço a unir o Executivo e o Legislativo, existem nesse sistema mecanismos que garantem a limitação do poder pelo poder: o voto de desconfiança, através do qual o parlamento pode derrubar o Gabinete e a dissolução do parlamento, através da qual o Gabinete tem a chance de, caso a opinião pública lhe seja favorável, obter um Legislativo menos arredio ao seu programa de governo.

Além disso, todos os mecanismos de fiscalização e controle hoje existentes no Congresso, como as Comissões Parlamentares de Inquérito, a convocação de Ministros e o julgamento das contas do Governo, continuariam a existir.

Não custa, de todo modo, fazer as seguintes considerações sobre o histórico do princípio de que cuidamos.

2.2 Histórico do dogma da separação dos poderes.

Sua versão moderna foi formulada por Montesquieu no seu O Espírito das Leis (1748) a partir de reflexões - vejam que ironia - propiciadas por uma viagem à Inglaterra entre 1729 e 1730. Já então havia, naquele país, mais liberdade do que na França do antigo regime. E ao analisar as instituições inglesas no capítulo "A constituição da Inglaterra" o autor concluiu que isso se devia ao exercício das funções do Estado por diferentes corpos de agentes públicos[vi]. Com o sucesso do livro de Montesquieu, o princípio da separação dos poderes se estabeleceu, no século XVIII, como uma fórmula contra a tirania[vii].

Já o sistema Westminster tal como o conhecemos, é dizer, como um sistema de mecanismos de democracia representativa, só se formaria ao longo do século seguinte com a organização dos partidos políticos[viii] e a edição de Leis eleitorais que ampliaram progressivamente o sufrágio[ix].

O que significa dizer que a experiência parlamentarista que exsurgiu na democracia representativa britânica não pode ser validamente censurada com base no dogma da separação dos poderes. Antes, temos elementos para, com base na experiência britânica, questionar a autoridade e pertinência daquele dogma.

Além disso, simplesmente não se verificou, até aqui, um só país onde existisse uma absoluta separação dos poderes. É disso que trataremos a seguir.

2.3 A separação dos poderes na prática.

Vejamos o caso do Brasil: O Executivo participa do processo legislativo por meio do veto ou sanção (art. 66 da Constituição Federal - CF), bem como edita Medidas Provisórias com força de Lei (art. 62 da CF), além de poder conceder indulto e comutar penas (art. 84, XII da CF), casos nos quais funciona, na prática, como instância final do Poder Judiciário em matéria de execução penal. Os tribunais criam normas processuais ao disporem sobre o seu regimento interno (art. 96, I, "a" da CF) e o Supremo Tribunal Federal, em particular, exclui do mundo jurídico leis julgadas inconstitucionais (art. 102, I, "a" e 102, § 2º da CF), bem como edita súmulas vinculantes (art. 103-A da CF). E o Senado, por fim, funciona como tribunal ao julgar os crimes de responsabilidade do Presidente da República (art. 52, I da CF).

E nesse aspecto o Brasil não é uma exceção à regra, mas um perfeito exemplo do que ocorre ao redor do mundo. Carlos Maximiliano chegou a afirmar que o princípio da separação dos poderes "caiu em desuso, por falta de correspondência à realidade objetiva"[x]. E continua: "Tem a sociedade órgãos distintos, autônomos, até independentes; porém não separados. Como no corpo do homem, não há no do Estado isolamento de órgãos, e sim, especialização de funções"[xi].

Dito isso, podemos concluir que a experiência política dos povos, não surpreendentemente, não tem se comprometido rigidamente com o dogma racionalista da separação absoluta dos poderes. Pelo contrário, o padrão tem sido o compartilhamento institucional e constitucional de atribuições.

Tudo que foi exposto até aqui, no entanto, diz respeito ao Direito Público positivo; aos compartilhamentos de competências previstos e descritos no texto da nossa Constituição escrita. Mas cabe considerarmos, também, a nossa Constituição não escrita, que se corporifica no que poderíamos chamar de práticas políticas ou institucionais. É o que faremos na subseção seguinte.

2.4 O Presidencialismo que se tem praticado no Brasil é um sistema no qual há equilíbrio entre os poderes?

Aqui, o questionamento que nos move é o seguinte: Seriam, as práticas políticas características do Presidencialismo que se pratica no Brasil propiciadoras de um equilíbrio harmonioso entre os poderes no que toca especificamente às funções propriamente de governo, tais como a discussão e implementação de políticas públicas que demandem ações coordenadas do Executivo e do Legislativo?

Começaremos analisando a dinâmica do nosso Presidencialismo de coalizão.

Pois bem, uma vez eleito o Presidente da República com uma coligação que não lhe garanta uma maioria no parlamento (o que tem sido a regra), sua primeira tarefa passa a ser a de formar uma base no Congresso Nacional, atraindo os partidos que não lhe apoiaram durante as eleições com a distribuição de pastas no ministério e de cargos no segundo e terceiro escalões da administração. Selado o apoio, o partido assumirá um ministério ou secretaria e passará a integrar essa entidade que chamamos, no Brasil, de "base aliada", que é o laço que, no nosso sistema, une o Executivo e o Legislativo.

Então, podemos perguntar: Por que os presidencialistas se chocam com a fusão orgânica entre esses poderes quando ela se dá sob o Parlamentarismo e se corporifica na instituição do Gabinete e não se escandalizam quando a união se dá sob o Presidencialismo com o nome de base aliada? Ora, se o gabinete é uma comissão do Legislativo, que exerce as funções executivas com o comando do primeiro-ministro, a base aliada é, do mesmo modo, uma comissão de um poder em outro (do Executivo no Legislativo), que exerce as funções legislativas sob o comando do líder do governo na casa.

E não se diga que a formação de uma base aliada majoritária no Congresso Nacional, situação na qual se pode afirmar, não sem algum exagero, reconhecemos, que o Executivo e o Legislativo são um só, e que aquele controla esse último, pautando-o e direcionando suas ações, seria algo raro ou incomum.

Na verdade, o raro e incomum tem sido as situações nas quais o governo falha em formar uma maioria congressual simpática aos seus projetos. O que temos visto na nossa experiência presidencialista pós-1988 é uma sucessão de governos que formaram coalizões suficientemente sólidas não só para editar leis em sintonia com suas políticas, mas até mesmo para reformar a Constituição em pontos sensíveis e polêmicos, como é o caso das emendas constitucionais 20, de 1998 e 41, de 2003, que reformaram o sistema de previdência dos servidores públicos; da emenda constitucional 45, de 2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, e da emenda constitucional 19, de 1998, que avançou uma reforma administrativa. Portanto, não se trata, a circunstância de que cuidamos, de um arranjo improvável a demandar uma inusitada conjunção de fatores, mas de algo bastante corriqueiro. Mas isso não é tudo.

Além de a formação de uma base aliada majoritária no Congresso Nacional ser a regra no nosso presidencialismo de coalizão, é importante que se diga que esse estado de coisas não é um luxo do qual o governo poderia prescindir, mas um requisito de sobrevivência, eis que um Congresso arredio pode se valer de certos mecanismos (tais como as comissões parlamentares de inquérito) com o fim de paralisá-lo[xii].

A partir dessas constatações, concluímos que além de não ser possível extrair do princípio da separação dos poderes razões conclusivas para se censurar o Parlamentarismo em abstrato; podemos, sim, extrair dele argumentos para criticar o nosso Presidencialismo de coalizão e o desequilíbrio de forças que ele enseja; com o Executivo subjugando, aliciando e pautando o Legislativo, e esse último se apequenando ao vender sua adesão ao preço de cargos e emendas no orçamento, quando não de mensalões ou outras vantagens ilícitas[xiii], nos casos em que o governo consegue formar uma base aliada congressual majoritária. E quando não é esse o caso, e o Executivo não forma uma base aliada confiável, o que temos é o surgimento de um impasse institucional, um abraço de afogado entre o Executivo e o Legislativo, conduzindo à anulação mútua desses poderes e à formação de um vácuo que, naturalmente, leva o Judiciário a se mover e ocupar o espaço deixado.

Mas como esse desequilíbrio dos poderes constituídos influi na avaliação que os cidadãos fazem das instituições políticas? E em que medida o descrédito dessas (em especial do Congresso Nacional) influi na discussão sobre o Parlamentarismo? Trataremos, pois, dessas questões.   

2.5 O atual descrédito do Congresso Nacional e o desequilíbrio dos Poderes.

Há as resistências ao governo de Gabinete que se fundam, em última análise, em uma desconfiança generalizada com relação às instituições políticas e, em especial, com relação ao Congresso Nacional. Desconfiança que tem sido mensurada e registrada em diversas pesquisas de opinião[xiv].

Nesse ponto, paradoxalmente, o fracasso do nosso sistema presidencial (e o desprestígio do Congresso, com a sua transformação em um balcão de negócios é só uma das faces desse fracasso) transforma-se em um óbice à sua substituição.

Ora, o atual descrédito de nossas instituições políticas, é certo, não se deve exclusivamente ao sistema que praticamos, mas isso não nos impede de constatar que a política de aliciamento e de "toma-lá-dá-cá", que lhes são próprias, contribuem decisivamente para esse cenário. A simples formação das coalizões tende a ser vista pelos desavisados não como um imperativo do sistema, mas como uma expressão do fisiologismo dos partidos cooptados, que parecem ter uma fome sem fim de cargos; como uma traição do Presidente eleito, que após uma renhida disputa eleitoral, para a surpresa daqueles - os desavisados - aproxima-se justamente dos grupos com os quais, a pouco, digladiava-se ou, ainda, e isso é mais frequente, como corrupção pura e simples. E não se diga que, nesse caso, o problema não estaria no sistema, mas nas pessoas comuns que não seriam capazes de entendê-lo. Ora, não são as pessoas que têm que estar à altura do sistema, mas o sistema que deve estar à altura das pessoas. Despropositada, portanto, a posição daqueles que fazem odes ao Presidencialismo em abstrato para, logo na sequência, lamentar que os brasileiros é que não são bons o suficiente para ele.

Então, embora seja compreensível que o descrédito das instituições políticas gere uma apatia, quando não uma antipatia, com relação a toda e qualquer reforma política, não faz sentido que aqueles que defendem a adoção do governo de Gabinete tenham que se explicar pelos pecados fomentados ou causados pelo nosso sistema presidencial. Não é razoável que esse descrédito generalizado acabe se transformando em um argumento pró-Presidencialismo, quando, insistimos, boa parte dessa desesperança se deve às mazelas desse mesmo sistema.

Mas vencida essa etapa, passemos à parte histórica do nosso trabalho, na qual enfrentaremos as críticas dos que afirmam que nunca se praticou o sistema de Gabinete durante o segundo reinado, eis que o que se praticava então era o assim chamado "parlamentarismo às avessas".

 

 

3.PARLAMENTARISMO NO SEGUNDO REINADO.                         

De pronto, temos que ponderar que mesmo se restasse demonstrado nunca se ter praticado o Parlamentarismo no Brasil, daí não decorreria que não deveríamos começar a praticá-lo, desde que estejamos de acordo a respeito da sua superioridade quando comparado com o Presidencialismo. Mas, de qualquer forma, nós enfrentaremos o problema formulado e o faremos a partir de um caso concreto: A queda do Gabinete Lafaiete.

3.1 Gabinete Lafaiete: Um estudo de caso.

Esse gabinete caiu por não ter o necessário apoio do seu partido na Câmara. E essa falta de apoio sequer chegou a ser materializada na aprovação de um voto de desconfiança. O gabinete se retirou em 03.06.1884, mas desde 06.05.1884 que as relações entre o Governo e a Câmara dos Deputados estavam abaladas em razão da divulgação de carta do Presidente do Conselho de Ministros direcionada ao até então Ministro Rodrigues Júnior, na qual, atribuindo-lhe tibieza, era-lhe dito que ele seria afastado da Pasta da Guerra. Esse mal-estar é registrado nos Anais da Câmara dos Deputados ao longo do mês de maio[xv].

Foi nesse ambiente que o Governo chegou à sessão do dia 03.06.1884, quando seu candidato à Presidência da Câmara saiu-se vencedor com uma margem de apenas dois votos. Percebendo a fraqueza do Gabinete, César Zama, deputado Liberal pela Bahia, pediu que se votasse uma moção de desconfiança, a qual também foi rejeitada, mas - de novo - por uma apertada margem, dessa vez de quatro votos. Bastou isso para que Lafaiete percebesse que já não podia governar, vindo a " no mesmo dia " pedir sua exoneração ao Imperador, o qual, após reunir-se, em separado, com as maiores lideranças do Partido Liberal (Saraiva, Afonso Celso, Sinimbu e Dantas) encarregou esse último de organizar o novo Gabinete.

A queda do Gabinete Lafaiete é, pois, um caso que nos permite tirar as seguintes conclusões sobre o sistema representativo que se praticava no Brasil no final do segundo reinado:

1) Naquela altura, a composição do Governo (a demissão e nomeação de ministros) já era uma atribuição, na prática, privativa do Presidente do Conselho de Ministros, como se conclui da reação do Imperador ao ?apelo? que lhe fizera o Ministro da Guerra Rodrigues Júnior.

2) A confiança da Câmara era essencial para a manutenção do Gabinete. E mesmo vitórias apertadas do Governo em questões importantes poderiam bastar para que esse se retirasse; e

3) Retirado o Gabinete, o Imperador ouvia os principais líderes políticos antes de convidar um parlamentar a formar um novo ministério. O Soberano, portanto, não deliberava sobre a questão sozinho e autoritariamente.

Além disso, os debates que - no ano anterior - suscitara o assassinato do jornalista Apulcho de Castro, outro evento que abalou a credibilidade do gabinete Lafaiete, mostram o quão viva era a disputa pelo convencimento do público. O esforço que o Jornal do Comércio, situacionista, fazia para repelir as acusações do oposicionista Gazeta de Notícias demonstra que longe de ser uma comissão ou extensão do Poder Moderador, habilitado a permanecer no poder enquanto essa manutenção fosse agradável ao Soberano, o Gabinete conferia peso e importância àquilo que o Visconde de Ouro Preto designaria de "razão pública"[xvi]. É que se disseminou a opinião segundo a qual as autoridades responsáveis pela segurança pública da corte teriam falhado ao tratar dos incidentes que levaram ao assassinato daquele jornalista. Essas autoridades, lembramos, eram subordinadas ao Ministro da Guerra.

Os acontecimentos da Rua do Lavradio foram analisados e esmiuçados em diversas edições da Gazeta de Notícias entre o fim de outubro e meados de novembro de 1883[xvii].

Acusações que foram respondidas pelo próprio Rui Barbosa, o maior e mais bem equipado polemista do Partido Liberal, no Jornal do Comércio.[xviii]

3.2 O peso da Opinião Pública.

Ora, qual seria o sentido de se gastar tanto latim, de se despejar tanta tinta em bom papel para se demonstrar que o Gabinete andou bem ou mal, foi diligente ou relapso, se o sustentáculo exclusivo ou, quando menos, preponderante para a manutenção do Governo fosse a pura e simples confiança do Imperador? Essas arengas públicas indicam, pelo contrário, que naquela altura a duração e a força dos Gabinetes variavam conforme variava a adesão da opinião pública, tal como registrada pela Câmara dos Deputados[xix].

Admitimos que durante o segundo reinado a Coroa foi, algumas vezes, não apenas um árbitro, mas um jogador (e um importante) no tabuleiro político. Essas atitudes tendenciosas ou dirigistas, como a ostensivamente tomada para acelerar a implementação da abolição incondicional e sem indenização, todavia, não foram tão frequentes como se poderia supor. Em minucioso artigo, Sérgio Ferraz (2013) destrincha, a partir da leitura de historiadores e fontes primárias, os motivos das quedas dos 37 Gabinetes do segundo reinado. Nele, o autor chega à conclusão de que em 51,3% das retiradas dos governos essas se deram por motivos exclusivamente parlamentares e sem qualquer intromissão da Coroa. E em apenas 27% dos casos o ministério caiu por exclusiva decisão do Imperador[xx] [xxi].

Foi a propaganda republicana, e a sua narrativa do "poder pessoal", responsável por boa parte da desinformação que se espalhou sobre o segundo reinado. A imagem do tirano que, fingindo conceder poder e autoridade à Câmara dos Deputados, nada mais fazia senão dirigir com punho de ferro os destinos da nação, estabelecendo, assim, um "parlamentarismo às avessas" simplesmente não condiz com a realidade dos fatos.

Os avanços da Coroa sobre a política partidária, provocando, em alguns casos, a derrubada de Gabinetes que contavam, ainda, com o apoio da maioria da Câmara dos Deputados[xxii] desnaturaria o parlamentarismo, transformando-o em um outro regime? Se esse for o caso, então temos de concordar não ter havido Parlamentarismo na Inglaterra até 1835, ano no qual, de maneira precipitada, Guilherme IV demitiu um governo Whig nas mesmas condições[xxiii].

E mais.

O poder que formalmente derivava do Moderador, de dissolver a Câmara dos Deputados nos casos, em que o exigisse a salvação do Estado (conforme dispunha o art. 101, inciso V da Constituição do Império) descaracterizaria o Parlamentarismo praticado no segundo reinado, transformando-o em um terceiro gênero entre o Presidencialismo e o Parlamentarismo, ou em um "Parlamentarismo às avessas"? Se também respondermos positivamente a essa pergunta, então temos que concluir que não se praticou esse sistema na Inglaterra até o ano de 2011, quando só então, com a Lei dos Parlamentos com Termo Fixo, extinguiu-se, do ponto de vista formal, essa prerrogativa da Coroa[xxiv] [xxv].

O sistema representativo que se praticou e se consolidou evolutivamente ao longo do segundo reinado foi o parlamentar. Um Parlamentarismo que contou com um Soberano que foi, em alguns momentos, mais ativo e centralizador do que convinha, mas, ainda assim, um Parlamentarismo.

4. CONCLUSÃO E RESPOSTA AOS DIVERSIONISTAS.

Nesse ponto do nosso estudo, podemos concluir o seguinte: a) Não é possível se extrair do dogma da separação dos poderes razões conclusivas contrárias à adoção do sistema parlamentar em abstrato; b) O fracasso do nosso Presidencialismo de coalizão, paradoxalmente, tem contribuído decisivamente para a sua manutenção, eis que tem gerado um ambiente de descrédito generalizado com relação à política como um todo e de ceticismo ou antipatia quanto ao avanço de reformas políticas e c) Praticou-se o sistema de Gabinete no Império, durante o segundo reinado.

Essas ponderações até aqui apresentadas, todavia, não enfrentam objeções outras à adoção do governo de Gabinete que, por não ferirem o mérito da contenda, nós chamamos de diversionistas.

Aqueles que adotam a estratégia diversionista de defesa do sistema presidencial opõem à discussão sobre a implementação do sistema de Gabinete no Brasil a necessidade de serem enfrentados muitos e graves problemas nacionais, tais como a violência urbana, o crítico estado da saúde pública, a morosidade da justiça, o desequilíbrio fiscal, o crescimento desordenado das grandes cidades, as diversas tensões que colocam frente a frente diversos grupos organizados e antagônicos, como ruralistas e ambientalistas; armamentistas e desarmamentistas; sindicalistas e empresários e etc. São essas, e muitas outras, o que chamam de "questões de fundo"; ao passo que a discussão sobre o sistema de governo seria meramente "formal".

Diante de tantas tarefas prementes a serem administradas, sofismam alguns, não seria a problematização do sistema de governo uma querela demasiado técnica e, por que não dizer, alheia aos problemas concretos das pessoas de carne e osso? Seria, enfim, oportuno tratar disso agora?

Bem, esse argumento contra a mera discussão do Parlamentarismo começa por ser falacioso ao nos propor uma falsa dicotomia. É ela: Ou bem nos voltamos para o debate da mudança do sistema de governo; ou abordamos os tais problemas de fundo, eis que tratar das duas coisas ao mesmo tempo seria impossível. No entanto, isso simplesmente não é verdadeiro. Temas de forma e de conteúdo podem e devem ser enfrentados simultaneamente nos foros políticos competentes. Certamente não são os parlamentaristas que obstruem a discussão e adiam a resolução desses importantes temas (até hoje pendentes mesmo depois de 126 anos de Presidencialismo, diga-se de passagem).

Além disso, um outro problema da posição diversionista é o seguinte. É muito forçada a distinção entre conteúdo e forma; e apressada a descrição do parlamentarista como sendo um mero formalista. Nas palavras de Raul Pila, em um sistema parlamentarista, em razão da responsabilidade que lhe é inerente, o que se espera é justamente que "(...) os governantes enfrentem os problemas nacionais, ou confessem logo não os poder resolver, a outras mãos mais capazes entregando a árdua tarefa" (1999, p. 320)

Mas é óbvio que não se pode passar da tese de que o parlamentarista seria indiferente ao enfrentamento dos problemas de fundo à tese de que seria o parlamentarismo, ele próprio e independentemente de qualquer outra circunstância, a solução de todos os problemas nacionais[xxvi], pois de fato ele não é.

Na verdade, não sustentam os parlamentaristas que a adoção desse sistema seria a solução definitiva para todos os problemas nacionais. Antes, defendem a superioridade desse sistema sobre o presidencial que se tem praticado no Brasil. E mais especificamente, advogam que os institutos das eleições antecipadas (mediante a dissolução da casa do parlamento perante a qual o Gabinete responde) e do voto de desconfiança aperfeiçoariam nossa combalida democracia. Não se trata, portanto, de se chegar ao "melhor dos mundos", mas de se abandonar um sistema ruim, adotando um outro melhor.

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Notas

[i] Objeções como essas pressupõem, o que não é fácil de se demonstrar, que existe algo como um "temperamento nacional"; e que esse pode ser monarquista ou republicano, Presidencialista ou Parlamentarista, estoico ou epicurista e etc. E pressupõe, ainda, que a partir da identificação desse temperamento, poderíamos concluir qual seria o sistema de governo "natural" de um dado país. Não custa registrar que não estamos certos a respeito da plausibilidade dessas premissas.

[ii] Uma outra linha argumentativa, a qual, todavia, não enfrentaremos aqui, é a de que o sistema presidencialista deitaria, no Brasil, supostas raízes históricas e populares. Eis como Paulo Bonavides rebate essas alegações: "O presidencialismo era algo tão estranho, tão anômalo, tão fora do conhecimento da liderança política proclamadora da República que Rui Barbosa levou mais de um decêndio de magistério constitucional a educar doutrinariamente os primeiros homens do novo regime, ensinando-lhes os princípios e a prática do sistema presidencial, adotado de surpresa, recebido dos Estados Unidos e gravado na Constituição pátria pelo punho daquele que foi o maior luminar de nossa história política. (...) Um dos argumentos escamoteadores e sofísticos largamente empregados na campanha de que resultou o plebiscito contra o Ato Adicional foi o de que o presidencialismo deitava no Brasil raízes históricas e populares. Isto é rigorosamente falso, conforme já assinalamos em reflexões antecedentes. A menos que essas raízes se buscassem na história do cesarismo político nacional, nas sedições, nas violências, nos atentados perpetrados contra a Constituição; na frequente e monótona série de golpes de Estado, ou no pesadelo da crise permanente em que se viu a nação mergulhada desde a primeira Constituição republicana, nos graves riscos de comprometimento da estrutura democrática do país, em face da vocação ditatorial do Presidente da República? (1969, p. 73-74).

[iii] Nas palavras de Bagehot: "O segredo da eficiência da Constituição Inglesa pode ser descrito como a união próxima, a quase completa fusão, dos poderes executivo e legislativo. Não há dúvida de que pela teoria tradicional, tal como ela existe em todos os livros, a virtude de nossa constituição consiste na inteira separação das autoridades legislativa e executiva, mas na verdade o seu mérito consiste na sua singular aproximação. O elo é o gabinete. Através dessa nova palavra, nós queremos designar uma comissão do corpo legislativo selecionada para ser o corpo executivo. A legislatura possui muitas comissões, mas essa é a maior". (1915, p. 166. Traduzimos)

[iv] Apud (GODOY, 2013, p. 12).

[v] Também Joaquim Nabuco teve a oportunidade, ao apresentar um perfil de Balmaceda, o ex-Presidente do Chile, de censurar o que chamara de "política silogística" e que nós chamamos de política fundada em dogmas abstratos. Eis as palavras do autor: "O que o fascina nessa quadra de 1870 a 1878, em que ele lança as bases de sua popularidade e forma a sua reputação parlamentar, é o manejo de ideias novas, essa espécie de exercício, tão atraente para os principiantes, ao qual se pode dar o nome de política silogística. É uma pura arte de construção no vácuo. A base, são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo, e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais" (2010, p. 34). Na sequência, ele afirma, abordando por outro viés essa mesma característica da personalidade de Balmaceda: "Não há em política pretensão mais fútil do que essa apresentada em nome da ciência. A ciência pode tanto criar uma sociedade como a glótica pode inventar uma língua, ou a filosofia uma religião. A política chamada científica propõe-se poupar a cada sociedade as contingências da experiência própria, guiá-la por uma sabedoria abstrata, síntese de experiências havidas, o que seria enfraquecer e destruir o regulador da conduta humana, que é exatamente a experiência individual de cada um" (ob. Cit. p. 58). Na sequência, o autor afirma que esse cientificismo seria ainda mais daninho do que o racionalismo jacobino que grassou no período do Grande Terror. Ele afirmou: "(...) mesmo o Racionalismo Jacobino de 1793 não é porém sistemático, arrasador, como o metodismo científico. Não há paixão, por mais feroz, que se possa comparar em seus efeitos destruidores à inocência da infalibilidade. Os Terroristas de Paris, "massacravam? brutalmente como assassinos ébrios; os Teoristas inovadores amputam com a calma e o interesse frio de cirurgiões? (Ob. Cit. p. 59). De nossa parte, cremos que o jacobinismo do século XVIII (que derivava do zeitgeist iluminista) e o liberalismo extremado do século XIX (que teria acometido a mente de Balmaceda) são diferentes gradações e instanciações de um único e mesmo fenômeno, que poderíamos chamar de racionalismo ou cientificismo. Por isso, guardadas as devidas proporções, as glosas que Nabuco opõe a Balmaceda também podem ser feitas, pelos mesmos motivos, ao racionalismo de Montesquieu, do qual trataremos a seguir.  

[vi] Posição que não é livre de controvérsias, como se depreende da leitura do trecho citado na nota iii, de autoria de um abalizado estudioso da Constituição Inglesa.

[vii] Cf. (Kelly, 2010. p. 366).

[viii] Nesse sentido, dando conta de que os partidos políticos tal como nós os conhecemos só surgiriam no século XIX: "A origem dos modernos partidos políticos se encontra certamente na Inglaterra com a divisão dos que defendiam a Coroa e os que pretendiam a defesa do Parlamento, depois de 1689. A princípio eram grupos que dividiam o Parlamento Tories e Whigs, fundados principalmente nas prerrogativas reais, na política econômica e nos privilégios da Igreja. Somente no século XIX caracterizou-se a divisão em partidos Whigs, os liberais, e Tories, os conservadores, e se constituíram como grupos que se identificavam com a norma eleitoral. Nos Estados Unidos, na Europa e entre nós, o século XIX viu a criação de partidos que passaram a constituir a base do sistema eleitoral, reunindo os grupos sob a orientação de ideologias e interesses próprios". (CAVALCANTI, 1969, p. 103)

[ix] Esse é o parecer de Raul Pila: "...na própria Inglaterra, foi somente em 1832 que, com a reforma eleitoral, o sistema inglês apresentou os seus caracteres, hoje clássicos" (1999, p. 269).

[x] (2005, p. 247).

[xi] Idem. Ver também no mesmo sentido: "Depois de introduzida com grande rigor pelas Revoluções americana e francesa, a separação rígida dos Poderes afigurou-se inviável na prática. Isto basicamente devido à necessidade de impedir que os Poderes criados se tornassem tão independentes a ponto de se desgarrarem de uma vontade política central que deve informar toda a organização estatal" (BASTOS, 1982, p. 139).

[xii] A respeito do que foi dito até aqui sobre o nosso modelo de presidencialismo de coalizão, e em especial sobre: a) a inexistência de uma nítida separação de poderes entre o Executivo e o Legislativo quando se trata da implementação de políticas públicas e b) o esforço que o Executivo é levado a fazer para simplesmente seguir existindo e funcionando como tal, cabe trazer o testemunho de quem participou diretamente da história: "O Congresso está arranhando o governo para enfraquecê-lo. Essa questão da Esca, se for a fundo, é uma complicação grande, não tem nada a ver comigo, vem de antes do Itamar, mas explode com ele, e aí pode haver uma relação perigosa entre a Aeronáutica e a Esca, porque funcionários da Aeronáutica eram pagos pela Esca para melhorar o salário. Não sei se é isso que está no relatório, mas parece ser verdadeiro. Ou seja, vai de novo confundir o Sivam. Então, veem-se duas coisas, digamos num plano mais interpretativo. De um lado, a pequena história que, na sua trança, vai deixando revelar o estrutural que está por trás e que, no primeiro momento, não aparecia. O que há de estrutural é que nós não contamos com um quadro em que Executivo e Legislativo tenham suas competências definidas. O Legislativo inchou sua competência fiscalizadora, avançando muito para dentro da administração propriamente dita para entorpecê-la, não para controlá-la, e marginalmente, claro, vão tirando as vantagens. E o Executivo não tem tido a condição de ser um Executivo, digamos, mais agressivo. Eu posso fazer isso, eu e um ou outro ministro, mas no conjunto é um Executivo que está minado pela própria incapacidade do Estado, não do governo, de se organizar. Esses vazamentos incessantes são a prova mais clara disso. Temos, então, um problema institucional, que existe, permanece, não foi resolvido. Nessa parte não houve reforma da Constituição, e a minha força advém da sociedade. Na verdade, o meu voto veio da sociedade, não do sistema político propriamente dito, que continua com as manobras de sempre. No passado, isso era resolvido através de uma paralisação do Executivo, via CPI ou coisa que o valha, ou então, num passado mais remoto, de uma ação autoritária do Executivo, seja aquele autoritarismo personalista do Collor que não deu em nada, seja mais para trás a coisa militar. Estou fazendo um esforço grande para adaptar a Constituição e, dentro do jogo democrático, fazer funcionar o Executivo, fazer as reformas e fazer com que o Legislativo tenha um canal efetivo de ação, mas sem ultrapassar certos limites". (CARDOSO: 2015, p. 349). Não é muito diferente o parecer de Pontes de Miranda. Eis o que ele dizia sobre a falta de equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo no Presidencialismo que se pratica no Brasil: "Tal como se estabeleceu nos textos e tal como se pratica, o presidencialismo brasileiro não é sistema de equilíbrio entre Poder Executivo e Poder Legislativo. Não se leva em conta, para governar, a maioria parlamentar ou congressual; faz-se, artificialmente, a maioria governamental. De modo que o presidencialismo brasileiro desequilibra o sistema, criando corpo ligado ao Poder Executivo dentro do Congresso Nacional". (PONTES DE MIRANDA: 1947, p. 52)

[xiii] Eis o que consta na anotação do dia 28.08.1995 do já citado diário da presidência de Fernando Henrique Cardoso: "Ainda ontem, o editorial do Estado de São Paulo reclama que os ministros, e sobretudo o PSDB, não recebem os deputados. E cita inclusive o caso do Partido Liberal. Ora, o líder desse partido, Valdemar Costa Neto, só vai lá para pedir nomeações para posições onde ele possa ter vantagens, e vantagens alegadamente pecuniárias. É inacreditável. Os jornais dão isso como descaso do Executivo, e não como pressão chantageadora do Legislativo. Reclamei com o Marco Maciel, aliás nem reclamei, ponderei, e pedi que ele intercedesse. Não que vá mudar, mas pelo menos me ajudará a obter pareceres mais equilibrados e favoráveis" (Ob. Cit. p. 224). Esse mesmo deputado, lembramos, viria a ser condenado na Ação Penal 470 (mensalão), por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a uma pena de 7 anos e 10 meses em regime semiaberto e a pagamento de multa.

[xiv] Pesquisa nacional realizada pelo Instituto Datafolha em julho de 2015 apontou que dentre 14 instituições (como a Igreja Católica, as Forças Armadas, os Sindicatos e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil), aquelas ligadas à política partidária são as com menor credibilidade perante a população: A presidência da República e os ministérios figuram na 12ª colocação, abaixo ficou o Congresso Nacional, em 13º e, em último, os partidos políticos.  (Notícia disponível em: http://www.oab.org.br/noticia/28578/oab-e-uma-das-instituicoes-com-maior-credibilidade-aponta-pesquisa. Acesso em 15.05.2016).

[xv] Eis, por exemplo, o que discursara o Deputado Lourenço de Albuquerque (Partido Liberal) na sessão do dia 14.05: "Eis aí porque, ao falar pela primeira vez sobre este desagradável incidente, eu disse: - A injúria não foi dirigida ao ex-ministro da guerra, foi irrogada à Câmara dos Srs. Deputados, a essa mesma Câmara que o ano passado apoiou o ministério, não obstante fazer parte dele o mesmo ex-ministro da guerra". Senhores, é verdade que o nobre presidente do conselho procurou prevenir esta objeção, dizendo: eu pensava que o meu colega ex-ministro da guerra tinha inteligência, e compreensão dos negócios da pasta que lhe foi confiada, mas o contato de nove meses convenceu-me do contrário. Pois, S. Ex. que é dotado de inteligência tão penetrante, que é tão sagaz, somente no fim de nove meses conheceu a incapacidade de seu colega" Não deve, portanto, ter sido esse o motivo que determinou a demissão do honrado ex-ministro da guerra. O que parece verossímil é que motivos de outra ordem influíram no ânimo do honrado presidente do Conselho, o qual, não tendo razões, nem o necessário desembaraço, para entender-se direta e pessoalmente com seu colega, deliberou escrever-lhe uma carta em termos tais que ele não ousasse lê-la perante o parlamento (...) peço-vos pois que, poupando dificuldades ao ministério, soliciteis a vossa demissão". Sobre a demissão do Ministro da Guerra Rodrigues Júnior, eis como a descreveu Afonso Celso Jr.: Em 1883 [1884, corrigimos], Rodrigues Júnior convidado por carta do Presidente do Conselho, Lafaiete, a solicitar exoneração de ministro da Guerra, recorreu ao Imperador, e S.M. lhe disse que, havia tempos, transmitira aos presidentes do Conselho a faculdade de propor a nomeação ou demissão de seus companheiros". (1998, p. 148). Resumindo um discurso do próprio Rodrigues Júnior, eis como João Manuel Pereira da Silva descrevera o episódio do "apelo ao Imperador " Percebeu [Rodrigues Júnior] que não podia mais entreter relações com o Presidente do Conselho, e cumpria-lhe diretamente solicitar do Imperador sua exoneração. Ouviu de Sua Majestade palavras lisonjeiras a seu respeito, e ao mesmo tempo a declaração de que a concedia. Dissera-lhe Sua Majestade que os Presidentes de Conselho deviam ter toda liberdade na organização e modificação dos ministérios, e bem assim na fiscalização e direção da política, e por esse motivo na conferência prévia, que recebiam antes do despacho conjunto dos ministros, os ouvia separada e particularmente?. (2003, p. 524)

[xvi] Referimo-nos à seguinte passagem do discurso proferido na sessão do Senado de 28.05.1884: "O que é preciso é ter paciência e resignarmo-nos aos inconvenientes do sistema, porque esses inconvenientes são também até certo ponto garantia contra os excessos ou desregramentos. No sistema representativo nem tudo se pode obter de pronto; porque ele é cheio de temperamentos e funciona com alguma lentidão. Tudo se consegue, porém, pelo influxo da opinião, pelos progressos da razão pública". (Anais do Senado do Império).

[xvii] Ver edições de 26.10; 27.10; 28.10; 29.10; 30.10; 03.11; 06.11; 07.11; 11.11; 12.11; 15.11 e 19.11. No ápice do tom acusatório contra o Gabinete, ali ficou escrito que... "A execução-sumária-violenta de 25 de outubro foi o produto de um plano e vontade do governo, dando para a execução as ordens e instruções ao seu principal preposto na responsabilidade da polícia da capital do Império". (15.11.1883) 

[xviii] Não exageramos ao afirmar que se a política é uma guerra, Rui Barbosa era um encouraçado. Eis o que a Águia de Haia escreveu na edição de 21.11.1883 do Jornal do Comécio: "Sem embargo, confessando estes três fatos, que desarmavam e inocentavam absolutamente o governo " uma polícia organicamente invalida; uma legislação de imprensa condescendente com todas as insolências e abuso da palavra; uma sociedade relativamente insensível a esses excessos (são os escritores oposicionistas que assim o capitulam) " a oposição acaba por essa consequência inimitável: O governo assassinou a Apulcho de Castro" (O artigo, cujo trecho é aqui reproduzido, também consta do livro O Crime de 25 de outubro: Uma escaramuça conservadora em 1883. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883 pp 21-30). Também trataram do tema as edições de 26.10; 31.10; 02.11; 03.11; 10.11; 13.11; 14.11; 17.11; 20.11 e 22.11

[xix] Sobre a centralidade da Imprensa no sistema parlamentar, e a importância, para o governo, de vencer o debate público, Walter Bagehot afirmou o seguinte: ?O Times fez muitos ministérios. Quando, como tem acontecido recentemente, há uma longa sequência de Parlamentos divididos, de Governos sem ?poder de voto bruto?, e que dependem da força intelectual, o apoio dos órgãos mais influentes da imprensa inglesa tem sido de importância crítica. Se um jornal de Washington pudesse derrubar o Sr. Lincoln, existiriam bons escritos e excelentes argumentos nos jornais de Washington. (...) Ninguém se importa com um debate no Congresso que "dá em nada", e ninguém lê longos artigos que não possuem influência sobre os eventos. Os americanos veem de relance as manchetes das notícias e todo o jornal. Eles não entram em um debate. Eles não cogitam entrar em uma discussão que seria inútil?. (1915, p. 175. Traduzimos)

[xx] Eis suas conclusões: "Essencialmente, os dados e as evidências arroladas autorizam conclusões que divergem, de modo não trivial, das perspectivas predominantes entre os estudiosos quanto à interpretação da dinâmica política do período. Em contraste frente àquelas visões, apresentadas na seção 2, as informações sistematizadas sugerem que a atuação do Trono, através do Moderador, não explica a rotação de governos entre 1840 e 1889. Distintamente, o estudo realizado mostra que conflitos, efetivos ou potenciais, entre o executivo e o legislativo, em especial a Câmara dos Deputados (padrão 3), foram o motivo mais frequente para a queda de gabinetes no Império, respondendo por mais da metade dos episódios examinados (19 em 37)". Disponível em http://www.fflch.usp.br/dcp/assets/docs/III_SD_2013/Mesa_11.1_-_Sergio_Ferraz_III_SD_2013.pdf. Acesso em 15.05.2016).

[xxi] Sobre o tema, deixou escrito Afonso Celso Júnior, que fora deputado de 1881 a 1889, o seguinte: "Por fim, nos últimos anos da monarquia, em caso de crise ministerial, o Imperador ouvia os presidentes das duas câmaras e os chefes políticos mais eminentes. De 1882 a 1885, a Câmara derrubou, por meio de votação de moções, 4 Ministérios: Martinho Campos, Paranaguá, Lafaiete e Dantas. Portanto, o parlamentarismo introduziu-se lentamente nos costumes políticos do Brasil, sem que o texto legal o consagrasse. Iam-se seguindo, quanto possível, as normas do parlamentarismo inglês. A opinião pública dominava. Ministro impopular não se demorava no poder. O Ministério do Marquês de São Vicente retirou-se em março de 1871, em virtude da oposição da imprensa, conforme nobremente confessou o ilustre estadista". (1998, p. 148).

[xxii] Foi o caso, por exemplo, da queda do Gabinete Cotegipe, o qual registrou, do seguinte modo um diálogo que manteve com a Princesa Regente em janeiro de 1888, mostrando que quando se tratava do tema da abolição, a Princesa Isabel, já a partir dessa data, adotava uma postura dirigista e voluntarista diante do governo: "Disse-me logo que parece que o ministério está perdendo prestígio. Perguntei em que e por quê. Sua alteza respondeu que refere-se à questão da abolição da escravidão, a qual, em São Paulo, tomava caráter muito sério e mostrou receio de que a província, nada esperando do centro, aderisse às tendências separatistas, e por isso desejava saber o que faria o ministério. Observei que a separação da província de São Paulo não era de temer-se (com dois ministros paulistas), tanto mais quanto o gabinete tem feito por ela em relação à imigração (mais do que por qualquer outra); que nós não púnhamos obstáculos nem desejávamos abater o que ali ia se fazer por iniciativa particular, apesar de reconhecermos que os resultados não correspondiam aos interesses dos proprietários e antes dificultaria a substituição do trabalho; que o ministério estudava a questão e em abril daria sua opinião, fazendo alguma coisa ou não, porém ficando ou retirando-se, pois não queremos o poder pelo poder e sim para o bem geral. Sua alteza parece inspirada pelo conde D´Eu, pois este ou aprovou o que ela dizia ou acrescentava algumas considerações. E, por fim, disse que minha lealdade exigia que eu aconselhasse a Sua Alteza que deixasse essa e as questões políticas aos partidos, como fazia a Rainha Vitória. Nesse ponto reclamou pelo seu direito, que não contestei, senão pelo uso que dele fizesse em questões que dividiram os partidos. Tanto Sua Alteza como o conde observaram que a Rainha já ia perdendo ou tinha perdido por essa neutralidade! Em vista disso, pareceu-me que Sua Alteza está influenciada, pois nunca falou tão clara e positivamente. Mostrava desejo de que alguma coisa fizesse, mas nunca pôs na balança a sorte do ministério como agora" (NASCIMENTO, 2011).

[xxiii] Cf. (BAGEHOT, 1915, p. 329).

[xxiv] Cf., nesse sentido, a Standard Note da Casa dos Comuns Fixed-term Parliaments Act 2011 (SN/PC/6111), de autoria de Richard Kelly, Oonagh Gay e Isobel White, de 16 de outubro de 2014. Ali está registrado que: ?A Lei [dos Parlamentos com Termo Fixo] também proíbe a Coroa de dissolver o Parlamento exceto em consonância com a legislação. Em Constitutional e Administrative Law (7ª Edição), Neil Parpworth anotou que "como uma consequência da a Lei dos Parlamentos com Termo Fixo de 2011, o monarca não mais possui o poder de dissolver o Parlamento" (Disponível em http://researchbriefings.parliament.uk/ResearchBriefing/Summary/SN06111. Acesso em 16/05/2016. Traduzimos).

[xxv] Sobre o art. 101, inciso V da Constituição do Império, cabe citar a seguinte passagem de Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, a qual demonstra que, no império, a dissolução da Câmara dos Deputados com a convocação imediata de novas eleições era uma medida aconselhada em situações de impasse entre a legislatura e o Gabinete: "É sem dúvida uma prerrogativa indispensável e essencialmente ligada ao Poder Moderador. Predomine ou não uma facção, intente ou não uma política fatal, desde que dá-se um desacordo inconciliável entre a câmara dos deputados e o ministério, o poder moderador é pela natureza das cousas chamado a examinar, e em sua consciência apreciar onde entende estar a razão. Se da parte da câmara cumpre dissolver o ministério: se da parte deste cumpre dissolver aquela, e dessa arte consultar a nação, para que por uma nova eleição manifeste o seu juízo e desejos. Se a nova maioria vem animada das mesmas ideias, então o ministério deve retirar-se; se pelo contrário é de diverso pensar, o acerto da dissolução fica demonstrado, e a harmonia restabelecida" (1857, p. 210). E observe-se que toda essa dinâmica, que até hoje é uma excelente síntese do funcionamento do sistema de Gabinete, foi descrita pelo maior publicista do Império a partir da interpretação do seguinte dispositivo constitucional: ?Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador (...) V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua?. O que corrobora o já citado parecer de Afonso Celso Júnior segundo o qual o governo de Gabinete se introduziu lenta e evolutivamente nos costumes políticos do Brasil, mesmo à míngua de previsões constitucionais (v. nota xxi).

[xxvi] Atento a isso, o mesmo Raul Pila ponderou que os parlamentaristas não desconhecem a complexidade do fenômeno político-social. E acrescenta: ?À reforma proposta não pedem eles mais do que ela realmente pode dar, isto é, a substituição de um mecanismo constitucional vicioso, por outro que julgam mais adequado e capaz de dar melhor rendimento à democracia brasileira. Será útil semelhante substituição? Produzirá um resultante mais conveniente o novo sistema de transformação de forças? Justificada estará, só por isto, a reforma parlamentarista?. (ob cit p. 357)

(*) Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Procurador da Fazenda Nacional em Pelotas e mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Pelotas. 

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