É o caso do Brasil. Nosso presidencialismo de coalizão faliu. É um poço de incompatibilidades. Uma fábrica de produzir incoerência. Se alguém ainda duvida, os últimos fatos comprovaram tal constatação. Tem desvios de ordem absolutamente pessoal, sem dúvida. Foi o que coloquei na primeira ideia deste artigo. Porém, as contradições são de tal grandeza que não é possível simplificar tudo como uma inferioridade civilizatória do nosso país. Temos problemas culturais, sem dúvida, mas somos uma sociedade vitoriosa, que almeja uma postura mais elevada. E as instituições não estão em conformidade com esse padrão.
Nosso ordenamento político-eleitoral tem problemas desde o ponto de partida. Não há conexão entre a escolha do Executivo e a do Legislativo. O governo que ganhou a eleição precisa, depois do pleito, fazer a maioria parlamentar. O correto seria o contrário: a maioria formar o governo. No nosso caso, a maioria precisará ser conquistada na barganha, pois não tem legitimação popular de origem. É terreno fértil para uma relação promíscua. Ocorre que o povo não foi convidado a fazer essa vinculação corresponsável entre o presidente da República e o Congresso Nacional. Logo, no lugar de uma interdependência entre os poderes, há uma independência com ares de rivalidade. É como se cada uma das partes prestasse contas para um eleitor diferente. Não têm compromisso com um projeto de país, mas com seus próprios projetos.
A imutabilidade dos mandatos também é uma cláusula questionável. O presidencialismo instabiliza um modelo de governo que eventualmente esteja dando certo e estabiliza um que esteja dando errado. Traduzindo: quando um governo vai bem, não pode continuar por mera força de data; e quando um governo vai mal, não pode acabar também por força de data a menos que tenha cometido uma flagrante ilegalidade. Isso é diferente no parlamentarismo, que deixa tanto o chefe de governo quanto os parlamentares dependentes de legitimação permanente. Seus planos e compromissos precisam parar em pé. Caso contrário, todos caem. E caem naturalmente, sem trauma institucional. E, de fato, um governo não deve continuar sem maioria parlamentar. E um parlamento não deve continuar sem maioria popular, que é de onde emana seu poder.
Por falar em poder, nosso presidencialismo o concentra demais na figura de uma única pessoa o presidente da República. Não tem como dar certo. Ninguém conseguiria responder a tantas responsabilidades. E não é recomendável que tenha tamanha força. Veja-se que cabe ao chefe do Executivo, além de montar o governo, editar medidas provisórias (ou seja, legislar diretamente), indicar ministros da suprema corte, nomear integrantes de agências reguladoras, escolher o chefe do Ministério Público, indicar membros dos órgãos de controle de contas, nomear comandos regionais de áreas administrativas, definir orçamento, pagar emendas parlamentares. Enfim, as tarefas em muito exorbitam as condições pessoais do presidente e o equilíbrio institucional. E quando essa autoridade fica abalada, eis que toda a estrutura se abala. Não há quem faça a mediação da crise.
É exatamente o que estamos vivendo neste momento. O Planalto, afora os problemas políticos, não consegue sequer ter ativismo econômico diante da crise. Não tem pauta para a nação. Carece de liderança. E a transição de poder não está naturalizada dentro do nosso sistema. Ela é necessariamente traumática, mesmo se for feita legalmente. A confusão entre chefe de Estado e chefe de Governo fica muito clara. Não há um anteparo entre os problemas de um governante e o próprio país. Tudo se confunde. E o Congresso, muitas vezes, e não é de hoje, joga na dinâmica do quanto pior, melhor. Também não se exige dele, porque no atual sistema realmente não lhe cabe, o protagonismo de uma agenda. A grande força emuladora é a presidência da República, que centraliza poder e recursos. Se ela não anda, quase nada anda.
Não sei se o Brasil está preparado para encarar um parlamentarismo puro e simples. O regime já foi derrotado num plebiscito sobre o tema, se bem que faz bastante tempo. Talvez tenhamos que encontrar um modelo misto, capaz de gerar maior coobrigação entre os poderes. E dos poderes com os eleitores. E vice-versa. Poderíamos começar pela redução de partidos, que hoje passam das três dezenas. Um absurdo. A partir disso, pensar no voto distrital puro ou misto, de modo que as comunidades tenham maior proximidade com os eleitos. Comprometer o parlamento. Criar mecanismos ordinários de substituição. Manter um poder com papel mais moderador. Descentralizar decisões políticas e escolhas orçamentárias. Enfim, redesenhar as regras que, se não justificam, certamente põem gasolina na fogueira da crise política brasileira. Não dá mais para continuar com nosso presidencialismo de coalizão. Até porque, vide os exemplos atuais, tudo o que ele menos faz é justamente produzir coalizão.
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Matéria publicada no NEWSLETTER oficial do autor, em 14/12/2015